Imaginava-se viajante. Não preparava as malas, nunca preparava as malas, não poderia querer preparar as malas. Um viajante parte sem aviso, é como um amante que sai à rua e não regressa. O navio esperava no cais, as grandes chaminés respirando contra o céu, o cheiro do mar subindo e descendo da amurada, era manhã. Era manhã e a azáfama dos marinheiros entontecia - movimento de um lado para o outro no convés, braços carregando cordas, mantimentos subindo e descendo, gritos atirados em redor, as gaivotas descrevendo perigosas trajectórias, cruzando e descruzando, a centímetros umas das outras, rasando as cabeças descobertas dos marinheiros. Imaginava-se subindo o passadiço, balançando, balançando numa dança de incerteza, entre passado e futuro - aquele navio era o seu futuro, meses e meses no mar, enfiado na casa das máquinas, o cheiro do vapor enchendo os pulmões, trocando conversas com os outros marinheiros (e, se tivesse sorte, com outro viajante que encontrasse), meses e meses a atirar cordame ao mar, e a recolher as cordas, imaginava o peixe a saltar na rede, a caminho da morte, o vociferar árduo dos homens, a tensão dos braços segurando-se à vida em dias de tempestade. Não era bem assim, mas talvez pudesse ser, enquanto estivesse embarcado, imaginava-se cercado por uma tempestade, as ondas castigando o casco, galgando o navio, alagando o convés de ponta a ponta, a água salgada penetrando a roupa e a carne até aos ossos, o chicote do mar insensível puxando a embarcação para o fundo, para as goelas abertas de Neptuno.
Ismael, chama-me Ismael, imaginava-se, enquanto escrevia estas palavras - chamo-me Ismael. A caneta a deslizar sobre o papel, sulcando o mar como um casco de navio procurando resistir à tempestade. A um canto do quarto, as malas paradas. No papel, partia já, a sirene rompendo o nevoeiro a caminho do horizonte aberto. A caminho da vastidão de uma história.
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